O Fenômeno Psicossomático como marca do Real
- selmapiranicabral
- 24 de jan.
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Atualizado: 24 de jan.
E nela se aloja um “eu”. Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de “eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um “eu”.
Clarice Lispector

A relação entre mente e corpo é uma questão que atravessa séculos de pensamento filosófico, científico e psicanalítico. Desde Freud, a psicanálise tem se dedicado a compreender essa interação, destacando o corpo como um espaço privilegiado onde os conflitos inconscientes se manifestam. Freud foi pioneiro ao demonstrar que sintomas físicos, como os da histeria, não eram exclusivamente fenômenos biológicos, mas expressões de processos psíquicos reprimidos. Essa compreensão abriu as portas para a ideia de que o corpo pode "falar" onde a fala consciente falha.
Jacques Lacan, ao reformular conceitos freudianos, oferece uma visão ainda mais complexa do corpo. Para ele, o corpo também não é apenas biológico ou funcional, mas um campo simbólico, imaginário e real. É um espaço de inscrição onde os efeitos da linguagem e do desejo deixam marcas. Dentro dessa lógica, o fenômeno psicossomático ganha contornos distintos: ele não se reduz a um sintoma conversivo que pode ser traduzido pelo simbólico, mas se inscreve diretamente no Real, uma dimensão que resiste à significação.
O Corpo como Lugar de Inscrição
Na teoria lacaniana, o corpo é concebido como algo que não nos pertence totalmente. Ele é moldado pela linguagem, pelo desejo do Outro e pelos registros do simbólico, imaginário e real. Lacan descreve o sintoma como um "acontecimento de corpo", ressaltando que é no corpo que os traumas, as ausências e os excessos do inconsciente encontram sua expressão.
No fenômeno psicossomático, essa inscrição se dá de forma radical. A linguagem, que geralmente permite a circulação de significados, "congela", e o corpo se torna o suporte de um gozo que escapa ao sentido. Esse estado é associado ao conceito de holófrase, que Lacan define como o bloqueio ou congelamento da articulação entre significantes. Assim, no fenômeno psicossomático, o corpo deixa de ser apenas o veículo de mensagens simbólicas e se torna um espaço onde o Real se manifesta como algo inscrito, silencioso e resistente à simbolização.
O Corpo e sua Singularidade
Como poetizado por Clarice Lispector, "É estranho ter um corpo onde se alojar." Essa estranheza reflete a experiência singular de habitar um corpo que é, ao mesmo tempo, íntimo e estranho. O corpo carrega traços de experiências que nem sempre podem ser traduzidas pela fala ou pela consciência, mas que se expressam como sofrimento físico. No fenômeno psicossomático, essas marcas refletem o impacto do desejo do Outro, da linguagem e das experiências traumáticas que resistem à elaboração simbólica.
Essa perspectiva nos desafia a olhar para o corpo não apenas como uma entidade biológica, mas como um território subjetivo, repleto de narrativas implícitas e de significados que escapam às categorias tradicionais. Ele é uma espécie de "texto vivo", onde a história do sujeito se aloja.
A Clínica do Fenômeno Psicossomático
Na prática clínica, o fenômeno psicossomático exige uma abordagem que vá além da interpretação simbólica tradicional. A escuta psicanalítica deve criar condições de modo a permitir a construção e circulação de sentidos onde não houve simbolização.
O analista, nesse contexto, tem a tarefa de intervir na holófrase, fragmentando-a e possibilitando que o sujeito construa significados. Esse trabalho não visa apenas aliviar o sofrimento físico, mas também permitir que o sujeito encontre formas de subjetivação que ressignifiquem sua relação com o corpo, com o desejo e com o Outro.
A Importância de um Olhar Humanizado
O estudo do fenômeno psicossomático transcende os limites da clínica, oferecendo uma nova maneira de abordar a relação entre mente e corpo. Ele nos desafia a adotar um olhar mais humanizado e menos reducionista diante do sofrimento físico que escapa às explicações médicas tradicionais. Reconhecer o corpo como um espaço de inscrição do inconsciente nos permite escutar o que não é dito, mas que se escreve na materialidade do corpo como uma forma de comunicação que não encontra outra via de expressão.
Conclusão
Essa pesquisa reforça a importância de reconhecer o corpo não apenas como uma entidade biológica, mas como um campo onde o inconsciente deixa suas marcas. O corpo, nesse contexto, não é meramente um veículo físico, mas um espaço de linguagem e expressão onde os conflitos psíquicos podem se manifestar de maneira singular. A psicossomática, sob a lente da psicanálise lacaniana, nos convida a escutar não só o que é dito, mas também o que é inscrito no corpo, considerando as narrativas implícitas, os sintomas e as ressonâncias subjetivas que escapam à fala direta, mas encontram sua forma na materialidade corporal.
Por fim, deixo minha pesquisa em anexo para consultas e espero que ela contribua para ampliar as reflexões e práticas clínicas no campo da psicossomática e da psicanálise.
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